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quarta-feira, 28 de abril de 2010

Meu Pequeno Paraíso (ou: Um mundo sem oposição).

Este é o sonho de todo político. O título, tomado mais uma vez de um filme, tem o termo “pequeno” aplicado somente no modo como tratam nosso povo e nosso país, que se torna pequeno mesmo. Pequeno de espírito, de educação, de lutas, de causas, de caráter e de honestidade. E parece que o sonho vem se tronando realidade no caso do nosso “ilustre” presidente viajante.

Não sou propriamente fã de Diogo Mainardi. Mas a gang lulista não se dá ao trabalho de desmenti-lo, pois o pior é que não consegue. Mainardi chegou ao cúmulo de prever o escândalo da telefônica com meses de antecipação. Ninguém fez nada e o nosso digníssimo presidente sancionou descaradamente a conhecida compra. Na Itália, os responsáveis estão presos. É típico de um regime político desqualificar os meios de imprensa que lhe fazem oposição, como se isso fosse proibido. O pior é que este recurso ordinário e pobre funciona muito bem, conforme podem atestar os psicólogos. Ainda mais se os meios de comunicação e os repórteres já cometeram atos falhos e parciais, como é o caso da Veja e da Istoé. E de muitos outros veículos de comunicação. A Carta Capital, outrora excelente revista (que de carta só tem o nome do dono e de capital, deixa para lá) é completa e notoriamente a favor do governo. Mas a pergunta que não cala é: por que não desmentem as acusações? Ficam somente com evasivas desqualificando e apedrejando as fontes? E o mensalão? Um governo não ter uma oposição intelectualmente atuante é extremamente preocupante (ainda mais quando essa oposição política, em sua maioria, tem o rabo preso e um passado nefasto). Não é preciso lembrar ninguém dos riscos históricos disso. Até Caetano foi massacrado porque falou mal de Lula, inclusive no meio acadêmico. E se ele falasse mal de outros presidentes anteriores? Seria crucificado também? Todo artista tem que ser hoje favorável ao governo?

Por que será que testemunhas importantes do mensalão mudaram de idéia da noite para o dia? O governo tem duas estratégias que vêm se tornando infalíveis: cooptar adversários a poder de cargos e dinheiro é uma delas. Vide o “ilustre” Mangabeira Unger, de passado conceituado (chegou mesmo a ser professor de Barack Obama e é considerado um bom filósofo de idéias radicais no exterior) que disse que o governo atual era o mais corrupto de toda a história do país e ganhou um cargo de ministro de Lula e pediu publicamente desculpas de forma humilhante. O que Unger dissera antes de ser nomeado foi exatamente isso: “Afirmo que o governo Lula é o mais corrupto de nossa história nacional. Corrupção tanto mais nefasta por servir à compra de congressistas, à politização da Polícia Federal e das agências reguladoras, ao achincalhamento dos partidos políticos e à tentativa de dobrar qualquer instituição do Estado capaz de se contrapor a seus desmandos.”

Como o ministério doado a ele foi vetado, Lula criou para ele uma secretaria (ou melhor, mudou o nome, simplesmente): a Secretaria de Assuntos Estratégicos (???). Unger deixou a secretaria que só fez manchar o seu currículo (o cargo atual é de Samuel Pinheiro Guimarães) com a desculpa do presidente de que ele teria que retomar seu cargo de professor na Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Mangabeira não teria conseguido ampliar a licença com a Universidade Harvard. Ou o fato é mesmo verdadeiro, ou as nossas universidades federais são muito boazinhas em comparação com a “inflexível” Harvard, já que aqui alguns professores a toda hora se licenciam e ampliam sua licença para fazer pesquisas (algumas de êxito e qualidade duvidosos), pós-isso e pós-aquilo no exterior. Passam mais da metade do tempo de trabalho efetivo fora da universidade e quando se aposentam, mal deram aulas. Vai ver nossas universidades são muito melhores que a Harvard e podem fazer isso.

A outra estratégia é criar uma blindagem efetiva de capangas dispostos a ir para a forca pelo grande líder (ameaças? recompensas?) e fecharem o bico. A lista é grande e qualquer pessoa que tenha o mínimo de informação e a mente não lavada conhece.

Na época dos horrorosos FHC e Sarney, todo mundo metia o pau. Agora, todo mundo briga a favor do presidente, que tem nas mãos até, pasmem, a UNE. Até o badalado programa CQC sai metralhando todo mundo, mas poupa Lula de forma suspeita. Têm medo ou foram também cooptados? Não costumo ver o programa, mas há duas semanas ficou claro quando vi por acaso uma repórter fustigando os nossos péssimos senadores (o que é certo), mas cantando toda hora os índices de popularidade de Lula. Ora, todo mundo teme brigar e perder votos ou audiência tendo em vista os índices de popularidade do eterno viajante. Até o “cozinheiro” Serra, que mantém razoável vantagem sobre Dilma. Bater em quem toma cacetada de todos os lados é fácil. Ser unanimidade é cômodo. Sou a favor de que haja sempre oposição consciente a qualquer governo. Quando não existir mais, será o fim.

PS: Só espero que me deixem em paz por escrever isso, já que a atitude policialesca e antidemocrática da internet é forte a favor do “hômi”, agredindo de maneira cruel e deselegante quem contra tamanho “semideus impoluto” se ergue.

domingo, 25 de abril de 2010

1Cr 2

O sítio pertencia a uma “celebridade” da “maravilhosa” (sub)música carnavalesca baiana. Apresentava uma lagoa vistosa, porém não muito apropriada para banhos.

Fazia um dia ensolarado e extremamente calorento numa dessas cidades satélites de Salvador. A metrópole soteropolitana e suas regiões adjacentes parecem admitir somente dois climas: calor “matando” ou chuva com muita lama e alagamentos. Por conta do calor, Marquinhos, um dos filhos de seu Antônio, o caseiro, com 9 anos de idade, resolvera, escondido dos pais, entrar na lagoa. Só ficaria próximo ás margens, no “rasinho” e nada de mais aconteceria. Depois era só sair, esconder a sunga molhada no varal, que ninguém iria notar no meio de tantas outras roupas e lençóis.

(Às 9:30 horas do dia... do mês de... de dois mil e quatro (2004), na sala de necropsia do Instituto Médico-Legal Nina Rodrigues, foi apresentado aos Drs...., peritos designados pelo Diretor deste Instituto, nos termos nos termos do art. 178 do Código de Processo Penal, o corpo de uma pessoa, para proceder ao exame necroscópico, que dera entrada no referido Instituto como sendo o de...)

Seu Antônio acordara mais tarde naquele dia. Esforçara-se por manter o sítio em ordem na véspera, e estava cansado. Olhou para o lado e sua esposa, Dona Ana, ainda dormia. Foi requentar algum café que sobrara da véspera. Notou que o filho mais novo já havia levantado da cama e não se encontrava na casinha. “Onde esse menino se metera?” Não se importou muito. “Filho de pobre, ainda mais com mais três irmãos, tem que ajudar os pais desde pequeno e tem que saber se virar sozinho desde logo”, pois a vida que teria pela frente seria dura. Pelo menos que fosse melhor que a sua. Ainda tinha sorte de estar empregado no sítio de um “famoso” e ter seu salário, mau ou bom, pago em dia. “Pobre honesto tem que confiar em Deus, na mulher, nos filhos e nos amigos, mesmo que quebre a cara depois”. É a única esperança que lhe resta.

(que segundo a guia policial nº... da Delegacia da... Circunscrição Policial, teria falecido às 9:00 horas do dia..., vítima de morte violenta )

Marquinhos se divertia a valer. No seu mundinho sem computadores, cinema, joguinhos eletrônicos, brinquedos caros e sem comida boa, aquilo era uma maravilha. Aquela era a sua lagoa, seu mar. Ora, se era seu mar, ele tinha que explorá-lo. Por que ficar só no raso se sabia nadar? Meninos têm que ter coragem. Tem que ser machos, como seus amiguinhos e seu pai sempre diziam. Não custa nada ir mais para o fundo. “Vou devagarinho, andando, que quando não der mais pé dou uma nadada de volta”.

(EXAME EXTERNO: Cadáver do sexo masculino, bem constituído, aparentando ter a idade referida na guia, e estar em mau estado nutricional. Trajando...)

Marquinhos foi andando para o fundo da lagoa rápido demais. Era um explorador, um pirata, um soldado, um heroizinho. Mas a lagoa tinha as suas armadilhas. Os pés de Marquinhos, de uma ora para a outra afundaram num lodo mole. Marquinhos ficou tranquilo, era só nadar de volta. Mas seus pés não saíam do lugar. Ao contrário, afundavam cada vez mais e mais. Marquinhos gritou o mais alto que podia.

(Fenômenos cadavéricos: Midríase bilateral. Córneas opacificadas. Rigor mortis presente. Hipóstases presentes, fixas.)

Seu Antônio reconheceu os gritos do filho vindo em direção à lagoa e saiu correndo. Vendo que o menino afundava inexoravelmente, nada passou pela sua cabeça a não ser salvá-lo. Mergulhou na lagoa com roupa e tudo. Alcançou Marquinhos e se apoiou no fundo da lagoa para puxá-lo. O menino ainda respirava. Tudo iria acabar bem. Mas os pés de seu Antônio ficaram também presos no lodo. Como era mais pesado, começou a afundar mais rápido do que seu filho. Gritou também.

(EXAME INTERNO - Cabeça: procedida a incisão bimastóidea, rebatido o escalpo, foi constatado: couro cabeludo sem lesões e sem sufusões hemorrágicas. Abóbada craniana sem fraturas. Serrada a calota e aberta a cavidade craniana, retirado o encéfalo, procedida a sua secção, o perito constatou... A base do crânio apresentava sufusões hemorrágicas em lâmina crivosa do osso etmóide – sinal da Vargas Alvarado - e na porção petrosa dos ossos temporais – sinal de Niles)

Jeílson, o filho mais velho, e dona Ana, acordaram com os gritos e foram correndo para a lagoa. Desesperados, se jogaram também sem nem tirar a roupa para salvar seu Antônio e Marquinhos.

(Feita a incisão bi-acrômio-manúbrio pubiana, desviada à esquerda da cicatriz umbilical, dissecada a musculatura peitoral anterior, aberta a cavidade abdominal pela linha alba, seccionadas as cartilagens costais e retirado o plastrão condro-esternal, os peritos observaram... Pulmões distendidos, com petéquias e sufusões hemorrágicas superficiais, com material pulverulento de cor preta em seu interior... Estômago com grande quantidade de conteúdo líquido escurecido.)

Os quatro encontravam-se agora presos no fundo da lagoa e afundavam cada vez mais. A água ia lhes cobrindo. Prenderam a respiração, como tentativa de defesa. Não conseguiram, um após o outro, conforme as suas capacidades, ficar muito tempo sem respirar. Inspiraram profundamente, mas o que penetrou em suas narinas e bocas foi água misturada com lodo em quantidade cada vez maior. E continuaram afundando, sem saber de onde vinha tamanha escuridão, se da lagoa ou do destino próximo. Perderam progressivamente a consciência, apresentaram convulsões e tudo acabou.

(Nada mais havendo a ser comentado, dão os peritos por findo o presente exame concluindo que Marcos Souza Santos faleceu de asfixia por afogamento.)

PS: O fato aqui relatado, assim como o anterior de 1Cr 1, foi verídico. Mais uma vez, é lógico, troquei o nome de todos os personagens envolvidos.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Quarteto para o Fim dos Tempos 1.

Ouso usurpar o nome de mais uma obra para usar como título. Desta feita, uma das minhas obras preferidas da música erudita contemporânea, considerada uma das peças de câmara mais importantes do século XX, composta para piano, clarinete, violino e violoncelo pelo francês Olivier Messiaen. Messiaen é considerado por alguns como o maior compositor do século passado, embora pessoalmente eu discorde, preferindo Stravinsky para ocupar tão honrado posto. O quarteto foi composto enquanto Messiaen era prisioneiro em um campo de concentração e seu título refere-se tanto ao apocalipse quanto ao fim dos tempos musicais organizados de forma regular. Aqui me refiro ao fim dos tempos mesmo. Ou melhor, da esperança neles, já que nunca existiram. Tempos em que se pensava haveria ética, moral e vitória da humanidade sobre as injustiças. Chamo de quarteto, pois quatro notícias estampadas na Folha de São Paulo de hoje ilustram bem o que eu quero mostrar:

1- A primeira notícia é: “Cientistas testam droga alucinógena contra a depressão”. Como se não bastasse acreditar plenamente que conversas que se prolongam por anos a fio e medicamentos com centenas de efeitos colaterais fossem capazes de curar ou melhorar depressões que muitas vezes têm fundo na insatisfação cada vez maior do ser humano com a sua condição de insucesso pessoal, econômico e/ou social, querem agora os doutores da ciência usar drogas alucinógenas, caminhando por uma estrada que não se sabe onde pode dar. Para mim, é dar carta verde para a fuga total da realidade, dos compromissos e da sociedade. Sempre me pergunto quem sustentaria isso:

“Um congresso internacional que começa nesta semana nos Estados Unidos vai reunir cientistas do mundo inteiro para discutir as possibilidades terapêuticas de alucinógenos contra problemas como depressão, transtorno obssessivo-compulsivo, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático. (...) Um deles (dos estudos), realizado na Johns Hopkins University, mostra que a psilocibina - princípio ativo de cogumelos sagrados usados em rituais indígenas - induz mudanças positivas no comportamento, no humor e nas atitudes, efeitos que duram meses após a ingestão da droga. (...) "Alguns cientistas têm se interessado em estudar essas drogas para casos que não respondem à medicação clássica", diz a psiquiatra Camila Magalhães, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, de São Paulo, e coordenadora do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool. "Essas drogas propiciam experiências que a pessoa não tem com o uso da medicação. No entanto, há um risco muito grande de expor o indivíduo aos prejuízos que os alucinógenos podem causar." "Não se sabe como a pessoa vai reagir. Em pessoas com predisposição, podem levar a distúrbios psiquiátricos". "É preciso avaliar muito bem o custo-benefício desse uso, o risco é muito grande", concorda o toxicologista Anthony Wong, chefe do Ceatox (Centro de Assistência Toxicológica), do Instituto da Criança do HC de São Paulo.”

2- A segunda usa uma desculpa esfarrapada para acobertar crimes: “Homossexualidade leva à pedofilia, diz igreja.”

“O Vaticano lançou uma dupla frente de defesa ontem no escândalo das suspeitas de abusos sexuais de menores por padres, com a divulgação de suas diretrizes internas sobre o tema, nas quais recomenda a denúncia à Justiça civil, e com a declaração de seu número dois, no Chile, de que a pedofilia não tem ligação com o celibato e sim com o homossexualismo. "Muitos psicólogos e psiquiatras demonstraram que não há relação entre celibato e pedofilia, mas muitos outros demonstraram que há entre homossexualidade e pedofilia", disse o cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado do Vaticano, em entrevista coletiva em Santiago reproduzida por agências de notícias.”

Acredito que a pedofilia, uma das mais abomináveis sexofilias, o “vício” mais difícil de se libertar alguém, tenha causas complexas, que não cabem a mim comentá-las. Acredito também que o celibato em si não responda por desvios sexuais nem de caráter. Mas tentar justificar um pecado vil evocando uma outra condição é mais uma prova de intolerância e ignorância da igreja católica.

3- A terceira demonstra mais uma pedra no descaso contra a educação em nosso país, uma das piores do mundo: “SP muda aluno de série durante o ano letivo”:

“Cerca de 13 mil alunos da rede estadual de São Paulo que cursavam o primeiro ano do ensino fundamental foram transferidos para o segundo ano semanas depois do início das aulas. As escolas têm consultado os pais para saber se eles querem que o filho mude de série. O governo permitiu a mudança alegando estar pressionado pelo Ministério Público, devido à alteração em 2010 no ensino fundamental, que passou de oito para nove anos.”

E assim se empurra com a barriga as deficiências. Acham, em outro exemplo, que as cotas vão reparar os defeitos (logo, assumidos descaradamente) do ensino público na universidade, como se ela, com todos os seus problemas e carências, tivesse condições de fazê-lo. Quando fui aluno de Ciências Econômicas na UFBA, muitos dos meus colegas não sabiam nem resolver um sistema de equações do primeiro grau (do primeiro mesmo!) e ali estavam. E nem existia o dito sistema de cotas. Enquanto não se consertar o ensino básico no Brasil, ruim tanto público quanto particular, continuaremos a figurar em estatísticas educacionais vexatórias no mundo.

4- A quarta é emblemática do Brasil: “Após dois meses, Arruda deixa prisão no DF”. Não vou perder tempo comentando tão asquerosa notícia, pois é nosso dia a dia e já cansou a todos mais um desses “prêmios” que o STJ dá ao país. A imagem de Arruda, um senhor vetusto de cabelos e barbas brancas, saindo da prisão ao lado de uma mocinha com cara de ser sua neta e que se dizia sua esposa (por que será que é sempre assim, hein? - ponto negativo para o feminismo) traduz a mais profunda vergonha dos sistemas político e judiciário no Brasil. No oitavo círculo do inferno de Dante, Malebolge, os ladrões eram punidos em uma cova com serpentes cruéis. Aqui são recompensados e eleitos, dia após dia. Ou, pior ainda dizendo, são as próprias serpentes e nós os condenados nesse Malebolge que parece não ter fim.

domingo, 11 de abril de 2010

1Cr 1

Robertinho era uma criança muito inteligente. Seus pais, que não foram aquinhoados com muitos recursos financeiros, tiveram a sorte de conseguir uma das raras escolas públicas de Salvador que apresentava um ensino razoável. Sua mãe, Dona Maria, evangélica, só implicava com a mania do seu filhinho de usar um “rabo de cavalo” no penteado, o que terminava até lhe caindo bem, pois seus cabelos eram muito bonitos. Mas Robertinho era exemplar. Cumpria suas tarefas da escola em dia, não se envolvia com más companhias e frequentava a igreja evangélica com a sua mãe. Embora achasse os cultos um pouco enfadonhos (não tanto como os da antiga religião de sua mãe), tinha a companhia de outras crianças e, especialmente, sabia que deixaria sua mãe feliz.

(Às 8:00 horas do dia... do mês de... de dois mil e oito (2008), na sala de necropsia do Instituto Médico-Legal Nina Rodrigues, foi apresentado ao Dr...., perito designado pelo Diretor deste Instituto, nos termos da Lei nº 11.690, de 09 de junho de 2008, o corpo de uma pessoa, para proceder ao exame necroscópico, que dera entrada no referido Instituto como sendo o de...)

Osório estava contente. Lucrara bastante com a venda daquele “pó” e daquelas “pedras”. Seu pessoal nem de longe parecia desconfiar que ele sempre subia o preço das drogas que traficava e ficava com o lucro. O chefão, que atendia pelo codinome Ratão, tinha ele em boa conta. Falava-lhe sempre, em tom confidencial, que um dia ele seria seu braço direito caso o seu preferido, Tonhão, “tombasse no exercício da profissão”. Tudo corria bem para ele. Suas três amantes e seus quatro filhos nem sequer sabiam da existência dessas famílias paralelas. Embora desconfiassem da “profissão” de Osório, nenhuma das suas mulheres ousava pressioná-lo, enquanto recebia dinheiro fácil em casa e presentes todo fim de semana. Já ensinara até ao menino mais velho como usar sua pistola semi-automática.

(que segundo a guia policial nº... da Delegacia da... Circunscrição Policial, teria falecido às 19:00 horas do dia..., vítima de homicídio.)

Naquele fim de tarde, Robertinho fizera cedo as tarefas de casa. Vestira a sua melhor roupa para ir à igreja com sua mãe. Todos os seus amiguinhos também deveriam estar lá, pois até haveria uma festinha de aniversário depois. Dona Maria resolvera sair mais cedo, pois compraria uma “lembrancinha” para o aniversariante.

(EXAME EXTERNO: Cadáver do sexo masculino, bem constituído, aparentando ter a idade referida na guia, e estar em bom estado nutricional. Trajando...)

Robertinho estava tão contente que até gostou mais do culto. O pastor era novo e o convidara para em breve ser batizado e também comparecer a outras atividades que estavam sendo organizadas para as crianças.

(Fenômenos cadavéricos: Midríase bilateral. Córneas opacificadas. Rigor mortis presente. Hipóstases presentes, fixas.)

Osório saíra mais cedo naquele dia. Antes de negociar os ‘”pacotes” iria passar na casa de Cleuza, uma de suas mulheres, para dar uma “conferida”. Estava a pé mesmo. Nesses locais, não era bom entrar com seu carro, tanto pela rua ser muito estreita, mas também para evitar suspeitas.

(EXAME INTERNO - Cabeça: procedida a incisão bimastóidea, rebatido o escalpo, foi constatado: couro cabeludo sem lesões e sem sufusões hemorrágicas. Abóbada craniana sem fraturas. Serrada a calota e aberta a cavidade craniana, retirado o encéfalo, procedida a sua secção, o perito constatou...)

Robertinho adorava a festinha. Dona Maria, entretanto, insistira em voltar mais cedo, pois “criança tem que dormir para crescer”. Além disso, andar muito tarde pelas ruas de Salvador é perigoso, ainda mais para uma mulher e seu filho pequeno. Ela parecia que tinha o futuro do filho todo em sua mente: “Robertinho vai ser doutor quando crescer. Vai ser o orgulho de toda a família!” Saíram pela rua alegres, conversando, andando a passos lentos.

(Feita a incisão bi-acrômio-manúbrio pubiana, desviada à esquerda da cicatriz umbilical, dissecada a musculatura peitoral anterior, aberta a cavidade abdominal pela linha alba, seccionadas as cartilagens costais e retirado o plastrão condro-esternal, o perito observou...)

Osório de repente sentiu como se sua alma esfriasse dentro do corpo. Viu de imediato Tonhão em um carro fechando o seu caminho com uma pistola apontada para o seu peito e gritando: “Vai morrer ladrão dos infernos! O chefe já sabe das suas armações!” Osório entrou em pânico. Sabia que não daria tempo de sacar sua pistola. Mas na sua frente passava uma mulher com uma criança. Pegou rápido a criança e a colocou junto ao seu peito como escudo, esperando que Tonhão pensasse duas vezes antes de atirar. O que se seguiu foi um disparo. Dois corpos jaziam no chão. Tonhão arrancou o carro. Nunca mais foi encontrado. Dona Maria chorou e chorou, mas ainda tinha a esperança de que seu filhinho poderia estar vivo.

(Nada mais havendo a ser comentado, dá o perito por findo o presente exame concluindo que Roberto da Silva Bispo faleceu de choque por hemorragia por transfixação do coração por projétil de arma de fogo.)

PS: O fato aqui relatado realmente, e de forma lamentável, ocorreu. Obviamente troquei o nome de todos os personagens envolvidos.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Por quem os sinos dobram.

Estamos diante de mais um fenômeno catastrófico que vem ceifando vidas (até agora, mais de 100 pessoas) que são as chuvas torrenciais no Rio de Janeiro. Essa infeliz situação leva-nos a refletir sobre duas coisas: 1- a banalização da morte e 2- de quem é a culpa?

Em primeiro lugar, a morte parece mesmo que se banalizou. Nunca me esqueci de uma cena do filme Hotel Ruanda onde um jornalista que filmou parte do imenso massacre sofrido pelos Tutsis pelos Hutus, quando elogiado, afirma que o que ele fez não teria a dimensão esperada. As pessoas veriam na televisão as imagens, achariam um horror, mas todos continuariam fazendo suas refeições e trabalhando como se nada acontecesse. Ou seja, isso não tocaria de fato o “coração” da maioria das pessoas. Em 1999, logo que me casei e morava no meu sítio, atrasei-me um pouco ao sair de uma aula que havia ministrado, pois tive que resolver assuntos internos na faculdade. Ao passar pela famigerada BR-324, deparei-me com um enorme engarrafamento. A causa fora um eucalipto que caíra pouco tempo antes, matando o motorista de um caminhão e outras pessoas. O fato, como todos, foi logo esquecido. Mas na minha cabeça veio a seguinte pergunta: e se eu saísse no horário previsto da faculdade? Poderia ser eu uma das vítimas? E se estivéssemos agora no Rio de Janeiro? Ou no Chile quando ocorreram terremotos? O fato, caros amigos, é que essas ocorrências infelizmente terminam comovendo pouco a nós e a todos. Amanhã são logo esquecidas ou lembradas sumariamente, sem sentimento. A morte se banalizou em um país onde as grandes cidades têm mais homicídios do que em guerras. Isso é uma triste constatação. Ninguém se comove como deveria. As vidas ceifadas terminam sempre em nossas mentes com um agradecimento estranho por não sermos as vítimas. A morte se banalizou a tal ponto de acharmos normais as taxas de homicídios nas cidades brasileiras. A tal ponto de quando um caminhão sofre um acidente, a população correr não para socorrer o motorista, mas para saquear a mercadoria. A tal ponto de existir forte ação da polícia contra assaltantes de bancos e carros fortes e pouca ação para investigar mortes ou garantir a segurança dos cidadãos.

Em segundo lugar, sempre se procura por a culpa em alguém. Sinceramente, não acho relevante nesse fato. Devem ser procuradas as causas. Sou crítico contumaz de todo governo, mas não acho que a culpa sempre seja dele em tudo. Na verdade, o governo deveria: 1- Ter leis ou políticas educacionais que coibissem as altas taxas de natalidade, especialmente entre aqueles que não têm as mínimas condições de criar nem a si próprios; 2- Impedir a invasão de locais perigosos por parte da população desfavorecida, não só por constante vigilância, mas dando emprego e melhores condições de habitação. Sem contar que essas invasões levam a desmatamento ostensivo do pouco verde existente nas cidades; 3- Estimular o povoamento do interior, o que evitaria a favelização das urbes. Isso poderia ser feito, por exemplo, forçando faculdades a irem para o interior e limitando o número delas nas grandes cidades. Faculdades e escolas no interior educam, fixam as pessoas no lugar e alavancam o comércio e os empregos na região. Pode parecer pouco, mas não é.

Voltando ao assunto, muito mais difícil é garantir a segurança de moradias em áreas que foram invadidas de forma desordenada e irregular. O governo não pode ser completamente responsabilizado pelo resultado desses riscos. Mas sim por ter permitido o risco. O assunto é complexo e o que interessa é que morreram de forma dramática pobres pessoas que merecem nosso mais intenso luto, mesmo sabendo algumas delas que corriam riscos, pois correram muitas vezes por falta de outras opções. A elas dedico o que escrevo. Que Deus se penalize delas e de seus familiares. Rememoro o grande scritor Ernest Hemingway em sua obra “For Whom the Bell Tolls” (que, aliás, deu um ótimo e clássico filme que recomendo a todos): “Não me perguntem por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.”

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Você já fez sua caridade de hoje? Eu já!

Se você, caro amigo, tem a minha faixa etária e também é trabalhador assalariado, fique tranquilo (se seu parâmetro ético é só esse), pois você já faz caridade mais do que suficiente sem nem saber:

a) Em primeiro lugar, pago uma quantia imensa de planos de aposentadoria compulsórios. Sou obrigado a pagar mais de 10% de minha renda bruta do estado e da universidade com os seus planos de aposentadoria, que, pasmem, são individualizados e excludentes, além do INSS, que também pago. Como estamos em um país democrático, não posso optar por não fazê-lo. Logo, contribuo para a aposentadoria de todos nesse país. O que me deixa chateado é a presença no meio de pobres aposentados de algumas pessoas que: 1- ganham aposentadorias especiais estranhas ou pensões exorbitantes do cônjuge falecido (mesmo tendo muitas vezes empregos bem remunerados); 2- mulheres que nunca se encaixaram nem se encaixarão na teoria da “dupla jornada” e se aposentam mais cedo; 3- trabalhadores rurais (que não contribuem com um centavo para o INSS) falsificados (nunca trabalharam no campo, mas são amigos de certos políticos); 4- sortudos que pegaram o trem da legislação anterior e voltaram a ocupar cargos remunerados; 5- aposentarias e auxílios doença fraudulentos, etc., etc. Ora, pode-se argumentar que um dia me aposentarei. Já fiz o cálculo, considerando que eu tenha a sorte de atingir a idade média de vida do sexo masculino no nosso país. Esse dinheiro nunca vai voltar para a minha mão, ainda mais que há uma redução no que se recebe e há um limite para o número de aposentadorias de cada um. Mesmo ainda porque, como diz a tatuagem do personagem principal do filme “Dia de Treinamento”: “a morte é certa, a vida não”.

b) Em segundo lugar, contribuo para a redução da energia elétrica de muitas pessoas, ao pagar uma conta exorbitante. Como já bem definiram, o preço da energia elétrica que uma família da classe média paga no Brasil é dos mais caros do mundo, só comparável a países ricaços e de população abastada. O mesmo vale para a água, telefonia, etc.

c) A seguir, vem a mensalidade da escola de meu filho, que sobe todo ano. Ela é cara, pois o custo das inúmeras bolsas que a escola e o governo dizem que subsidiam na verdade recai sobre os pais que tiram dinheiro do bolso.

d) Comprometendo parte considerável do meu orçamento, dizimando (ô palavrinha bem posta!) ou melhor, comendo mais de 10% do que ganho, vem o pagamento do plano de saúde, que ainda é dos mais baratos. Como eu, especialmente, bem como meus dependentes pouco usam dele, estou pagando caro porque um número imenso de outras pessoas usam e algumas até abusam. Empresas de saúde têm bom lucro em todo mundo. O que todo paciente e médico deveriam refletir é que no Brasil não seria diferente e para se usar demais um plano, a conta deve ser dividida por todos. Mas comentarei melhor a crise dos planos de saúde em outra postagem.

Existem outros exemplos. Já falei em outra postagem sobre as “meias”. Não discuto o caráter humanitário, mas sim a penalização que sofre a classe média, muito mais do que os ricos, bem como o caráter compulsório de extorsão da previdência e de outros impostos e taxas (vide IPTU e a taxa do lixo), desatualizado e de critério extremamente passível de falhas. Em livros de economia do setor público, temos que um imposto deve ser progressivo de acordo com a renda. Mas também temos que serviços públicos (saúde, educação pública, segurança, etc.) devem ser acessíveis igualmente a todos os grupos sociais. Sejam ricos ou pobres. São princípios básicos e mundiais. Mas não estamos falando somente de impostos e bem sabemos que o sistema de alíquotas no Brasil é medieval, desproporcional para o que se ganha na classe média e com poucas categorias, nivelando ricaços a remediados. Ainda mais que todos nós sabemos que esse dinheiro “caridoso” não vai exatamente para as mãos de quem queríamos.

Como diriam os títulos dos filmes da imbatível e maravilhosa trilogia do grande cineasta polonês Krzystof Kieslowski: “a liberdade é azul, a igualdade é branca e a fraternidade é vermelha”. Ouso hereticamente completar: em verdade, todas elas são também translúcidas ou opacas. Mais ou menos, a depender do país.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Os delírios de consumo do brasileiro.

Agora a pouco acabo de assistir a uma reportagem na TV que, confesso, deixou-me perplexo. Um carro que é fabricado aqui, repito, aqui no Brasil, custa em média vinte mil reais a menos em países que o recebem, como Argentina e México. A reportagem do jornal televisivo tentava explicar a causa disso. Um consultor afirmava que era porque o brasileiro tem renda melhor, no que foi prontamente desmentido por um comentarista televisivo. A conclusão final foi que o automóvel brasileiro é um dos mais caros do mundo por conta dos elevados impostos. Ou seja, por conta daquele dinheiro (ou melhor, de uma das muitas fontes dele) que vai para financiar os mensalões, as viagens do presidente e sua vasta comitiva, as centenas de ministros inúteis, a empresa do filho do presidente, os governadores e prefeitos corruptos de todos os partidos, etc., etc.

Mas adiciono mais duas causas:

1- O consumismo do brasileiro, o maior consumista do mundo (superando os estadunidenses, que consomem porque podem, excetuando a mania de hipotecas imobiliárias deles). Geralmente é típico do brasileiro se pendurar em dívidas escabrosas em diversos cartões de créditos. Pagar vultosas quantias em restaurantes de luxo (ou não) com comida de qualidade duvidosa. É também típico dar dinheiro às montadoras, que batem recordes de venda em cima de recordes, com seus automóveis a preços imorais. Tem que ter carro e ponto, custe o quanto custar. Isso ajudou o preço das carroças a subir estratosfericamente, enquanto as ruas paradoxalmente se entulham de congestionamentos. Sinceramente, não consigo entender esse comportamento. Seria histeria coletiva? Comprei uma S-10 cabine dupla diesel, zerada, em 1999, por R$ 38.700,00 (tenho a nota fiscal até hoje), conforme insinuei em outra postagem. Se minha renda subisse o preço que ela subiu, entraria para os 99,99% de iludidos (ou cegos) que batem no peito e afirmam que a economia brasileira vai bem e não há inflação. Se vai bem, por que vejo sempre propagandas dizendo “compre logo o seu carro zero antes do próximo aumento”? Se vai bem, por que será que o ovo da páscoa (outra mania inútil de jogar dinheiro fora) ou o panetone de cada ano é sempre bem mais caro do que o do ano que passou? Se vai bem, por que será que tenho a impressão de que toda vez que o salário mínimo sobe diminui o número de funcionários em lojas e supermercados? Se vai bem, por que os laticínios subiram cerca de 300% em poucos anos (antes da falaciosa alta de preços mundial de alimentos)? Excesso de consumo somente? Ilusão de financiamentos parcelados até a morte com aquela taxazinha de juros sem vergonha? Sinceramente, não creio que seja só isso, mas uma boa dose de maquiagem estatística somada a um comportamento social de rebanho. Ao cérebro é mais fácil lidar com a idéia de que tudo vai bem. O que interessa para mim é que meu poder aquisitivo vem se esfacelando progressivamente. Talvez seja só o meu. Talvez seja só uma paranóia minha, do alto dos meus 45 anos, vendo as estradas da vida se estreitarem cada vez mais...

2- A segunda causa é a falta de investimentos no setor de transportes coletivos. Eles são sujos, desconfortáveis, poucos, caros e padecem do efeito “falso Robin Hood”: o trabalhador miserável paga a passagem na íntegra. Mas certos grupos, não. Não me levem a mal, mas até os empresários paulistas foram taxativos ao declarar na Folha de São Paulo que não existem meias em ingressos nem passagens. O que existe é que quem não tem carteirinha paga o dobro. E a maioria das pessoas que tem carteirinha não precisa comprovar renda familiar, o que seria o certo. Exceto uma parcela de estudantes menos favorecidos, não deveriam ter o seu cinema “patricesco” de shopping financiado pelo dinheiro do pobre trabalhador. Aqui em Salvador, possivelmente, temos o pior e mais caro transporte coletivo do país. Além de tudo, há a insegurança, com mortes e assaltos em coletivos, já que estamos largados às baratas em termos de segurança pública. Pelo visto, estamos numa situação sem fim.