O sítio pertencia a uma “celebridade” da “maravilhosa” (sub)música carnavalesca baiana. Apresentava uma lagoa vistosa, porém não muito apropriada para banhos.
Fazia um dia ensolarado e extremamente calorento numa dessas cidades satélites de Salvador. A metrópole soteropolitana e suas regiões adjacentes parecem admitir somente dois climas: calor “matando” ou chuva com muita lama e alagamentos. Por conta do calor, Marquinhos, um dos filhos de seu Antônio, o caseiro, com 9 anos de idade, resolvera, escondido dos pais, entrar na lagoa. Só ficaria próximo ás margens, no “rasinho” e nada de mais aconteceria. Depois era só sair, esconder a sunga molhada no varal, que ninguém iria notar no meio de tantas outras roupas e lençóis.
(Às 9:30 horas do dia... do mês de... de dois mil e quatro (2004), na sala de necropsia do Instituto Médico-Legal Nina Rodrigues, foi apresentado aos Drs...., peritos designados pelo Diretor deste Instituto, nos termos nos termos do art. 178 do Código de Processo Penal, o corpo de uma pessoa, para proceder ao exame necroscópico, que dera entrada no referido Instituto como sendo o de...)
Seu Antônio acordara mais tarde naquele dia. Esforçara-se por manter o sítio em ordem na véspera, e estava cansado. Olhou para o lado e sua esposa, Dona Ana, ainda dormia. Foi requentar algum café que sobrara da véspera. Notou que o filho mais novo já havia levantado da cama e não se encontrava na casinha. “Onde esse menino se metera?” Não se importou muito. “Filho de pobre, ainda mais com mais três irmãos, tem que ajudar os pais desde pequeno e tem que saber se virar sozinho desde logo”, pois a vida que teria pela frente seria dura. Pelo menos que fosse melhor que a sua. Ainda tinha sorte de estar empregado no sítio de um “famoso” e ter seu salário, mau ou bom, pago em dia. “Pobre honesto tem que confiar em Deus, na mulher, nos filhos e nos amigos, mesmo que quebre a cara depois”. É a única esperança que lhe resta.
(que segundo a guia policial nº... da Delegacia da... Circunscrição Policial, teria falecido às 9:00 horas do dia..., vítima de morte violenta )
Marquinhos se divertia a valer. No seu mundinho sem computadores, cinema, joguinhos eletrônicos, brinquedos caros e sem comida boa, aquilo era uma maravilha. Aquela era a sua lagoa, seu mar. Ora, se era seu mar, ele tinha que explorá-lo. Por que ficar só no raso se sabia nadar? Meninos têm que ter coragem. Tem que ser machos, como seus amiguinhos e seu pai sempre diziam. Não custa nada ir mais para o fundo. “Vou devagarinho, andando, que quando não der mais pé dou uma nadada de volta”.
(EXAME EXTERNO: Cadáver do sexo masculino, bem constituído, aparentando ter a idade referida na guia, e estar em mau estado nutricional. Trajando...)
Marquinhos foi andando para o fundo da lagoa rápido demais. Era um explorador, um pirata, um soldado, um heroizinho. Mas a lagoa tinha as suas armadilhas. Os pés de Marquinhos, de uma ora para a outra afundaram num lodo mole. Marquinhos ficou tranquilo, era só nadar de volta. Mas seus pés não saíam do lugar. Ao contrário, afundavam cada vez mais e mais. Marquinhos gritou o mais alto que podia.
(Fenômenos cadavéricos: Midríase bilateral. Córneas opacificadas. Rigor mortis presente. Hipóstases presentes, fixas.)
Seu Antônio reconheceu os gritos do filho vindo em direção à lagoa e saiu correndo. Vendo que o menino afundava inexoravelmente, nada passou pela sua cabeça a não ser salvá-lo. Mergulhou na lagoa com roupa e tudo. Alcançou Marquinhos e se apoiou no fundo da lagoa para puxá-lo. O menino ainda respirava. Tudo iria acabar bem. Mas os pés de seu Antônio ficaram também presos no lodo. Como era mais pesado, começou a afundar mais rápido do que seu filho. Gritou também.
(EXAME INTERNO - Cabeça: procedida a incisão bimastóidea, rebatido o escalpo, foi constatado: couro cabeludo sem lesões e sem sufusões hemorrágicas. Abóbada craniana sem fraturas. Serrada a calota e aberta a cavidade craniana, retirado o encéfalo, procedida a sua secção, o perito constatou... A base do crânio apresentava sufusões hemorrágicas em lâmina crivosa do osso etmóide – sinal da Vargas Alvarado - e na porção petrosa dos ossos temporais – sinal de Niles)
Jeílson, o filho mais velho, e dona Ana, acordaram com os gritos e foram correndo para a lagoa. Desesperados, se jogaram também sem nem tirar a roupa para salvar seu Antônio e Marquinhos.
(Feita a incisão bi-acrômio-manúbrio pubiana, desviada à esquerda da cicatriz umbilical, dissecada a musculatura peitoral anterior, aberta a cavidade abdominal pela linha alba, seccionadas as cartilagens costais e retirado o plastrão condro-esternal, os peritos observaram... Pulmões distendidos, com petéquias e sufusões hemorrágicas superficiais, com material pulverulento de cor preta em seu interior... Estômago com grande quantidade de conteúdo líquido escurecido.)
Os quatro encontravam-se agora presos no fundo da lagoa e afundavam cada vez mais. A água ia lhes cobrindo. Prenderam a respiração, como tentativa de defesa. Não conseguiram, um após o outro, conforme as suas capacidades, ficar muito tempo sem respirar. Inspiraram profundamente, mas o que penetrou em suas narinas e bocas foi água misturada com lodo em quantidade cada vez maior. E continuaram afundando, sem saber de onde vinha tamanha escuridão, se da lagoa ou do destino próximo. Perderam progressivamente a consciência, apresentaram convulsões e tudo acabou.
(Nada mais havendo a ser comentado, dão os peritos por findo o presente exame concluindo que Marcos Souza Santos faleceu de asfixia por afogamento.)
PS: O fato aqui relatado, assim como o anterior de 1Cr 1, foi verídico. Mais uma vez, é lógico, troquei o nome de todos os personagens envolvidos.
É hora de mudar.
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Sem medo de dar grandes passos, afinal não se pode atravessar um abismo com
dois pulinhos.
Há 12 anos
3 comentários:
Caro Sérgio,
Só existem advogados e médicos porque há pecado no mundo. Lhe sugiro que comece a pensar em outra, e, certamente, mais agradável ocupação para a eternidade. Eu, de cá, também vou refazer meus testes vocacionais, rs
Um abraço,
Marcelinha
Sujestão aceita Marcelinha. Desde já mudaria de ocupação se pudesse...
De Jânio: Sensível e bom escritor como sempre, meu mestre!
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